O Tio Alberto, pastor, a
troco de umas migalhas (como tantos outros) serviu cerca de 50 anos o mesmo
“dono”, a “falar” com as cabras, com quem dormia...
Vive hoje de uma “choruda”
esmola de menos de duzentos euros, paga pela segurança social.
Numa conversa, durante uma
visita que fiz pelas bandas onde sobrevive, pobre, mas com a dignidade de um
verdadeiro senhor, ouvi-o durante horas falar dos seus tempos de pastor.
Disse-me que um dos seus
passatempos preferidos era tentar acertar com pequenas pedras em outras mais ou
menos distantes e pôr nomes aos animais que formavam o rebanho. Não havia animal
que não tivesse nome, escolhido de acordo com as suas “particularidades”.
No último rebanho que
guardou, antes do gado passar a ser alimentado com farinha de peixe (como disse
com um sorriso matreiro) “batizou” de meia
leca, sonsa e periquita, o bode e duas cabras que faziam parte do rebanho,
cujas patifarias, segundo disse, muito o fizeram pensar e ficaram guardadas na
sua memória.
O meia leca adorava infernizar a vida dos animais mais velhos e dos mais
jovens, ameaçando-os, impedindo-lhes o sustento, em favor de um prado
verdejante, destinado a si e às suas protegidas (sonsa e periquita e poucas
mais). Aquela “alma travessa” era o verdadeiro espírito do mal! De vez em
quando desatava a correr como uma lambreta desenfreada, atrás da própria sombra,
ficava completamente louco e começava a balir estrondosamente e...“ai de mim se
não me abrigasse”, disse o Tio Alberto. Quando as crises lhe passavam parecia
um cordeiro, mas nunca se podia estar descansado, porque quando menos se
esperava... zás!
O olhar esgazeado
denunciava o mundo irreal em que vivia.
A sonsa era uma cabra malhada, castanha e branca. Estragava a
pastagem, debicando aqui e acolá apenas as ervas mais verdes e suculentas,
pisando com as patas aquilo que as outras eram obrigadas a comer. O seu ar de
sonsinha não condizia nada com o seu interior. Mimada e incompetente, fazia
birras quando o meia leca se abeirava dela e lhe dava a entender que queria
“saltar-lhe”. Era a ruína das pastagens. A única coisa que a acalmava, nos seus
desvarios, eram as carícias que, pacientemente, o Tio Alberto lhe fazia com o
cajado no focinho. Nessa altura mostrava os dentes, em jeito de sorriso, e
transformava-se numa cabra normal. O olhar envergonhado e “inocente” escondia o
veneno de serpente que lhe corria nas veias. A aparente candura disfarçava o
pecado dos atos.
A periquita era uma cabra de pescoço esguio e emproado! Esbranquiçada,
ninguém sabia a idade que tinha! O seu aspeto “oscilava” entre ar de reformada
e teenager inconsciente. Era a “desgraça” do rebanho! Ninguém sabia quando a
tinha pelo rabo ou pela cabeça. Manienta em último grau, quando não estava a
comer estava a balir, mas o som era de tal maneira arrepiante que todo o
rebanho ficava em sobressalto. Deve ter sido abandonada nas redondezas, pois
apareceu no rebanho, sem ninguém saber como. A propensão para o mal e o cinismo
eram evidentes no olhar opaco.
Do “convívio” do meia leca, da sonsa e da periquita
(muito prafrentex, como me disse o Tio Alberto) foram aparecendo cabras e
cabritos, qual deles o mais maléfico e ordinário. O rebanho, transformado em
“onda selvagem” teve que ser abatido.
Os serviços do Tio Alberto
foram dispensados. Foi nessa altura que começou a receber a “fortuna” de menos
de 200 euros mensais, sem nunca ter descontado, apesar de ter trabalhado 50
anos a troco de cama, roupa e mesa (dormir na palha, vestir roupa já não usada
pelo patrão, comer lavagem de sopa e nacos de pão duro).
Post Scriptum
Há quem diga que foram “malvados”
como o Tio Alberto que “arruinaram” a Segurança Social e quem faça “respeitosas
vénias de concordância” a tais energúmenos.
Miseráveis!
Tal como com o Tio Alberto, tambem fui dispensado. Não guardava cabras (nem cabroes) mas lidei com algumas (e com alguns). Apanhei um Meia Leca, protegido pelo poder instituido, que entendeu que eu estava a mais. Foram 42 anos de Trabalho Justo e Honesto. O Meia Leca que se foda.
ResponderEliminar