quinta-feira, 8 de maio de 2014

A sonsa, a periquita e o meia leca

O Tio Alberto, pastor, a troco de umas migalhas (como tantos outros) serviu cerca de 50 anos o mesmo “dono”, a “falar” com as cabras, com quem dormia...
Vive hoje de uma “choruda” esmola de menos de duzentos euros, paga pela segurança social.
Numa conversa, durante uma visita que fiz pelas bandas onde sobrevive, pobre, mas com a dignidade de um verdadeiro senhor, ouvi-o durante horas falar dos seus tempos de pastor.
Disse-me que um dos seus passatempos preferidos era tentar acertar com pequenas pedras em outras mais ou menos distantes e pôr nomes aos animais que formavam o rebanho. Não havia animal que não tivesse nome, escolhido de acordo com as suas “particularidades”.
No último rebanho que guardou, antes do gado passar a ser alimentado com farinha de peixe (como disse com um sorriso matreiro) “batizou” de meia leca, sonsa e periquita, o bode e duas cabras que faziam parte do rebanho, cujas patifarias, segundo disse, muito o fizeram pensar e ficaram guardadas na sua memória.

O meia leca adorava infernizar a vida dos animais mais velhos e dos mais jovens, ameaçando-os, impedindo-lhes o sustento, em favor de um prado verdejante, destinado a si e às suas protegidas (sonsa e periquita e poucas mais). Aquela “alma travessa” era o verdadeiro espírito do mal! De vez em quando desatava a correr como uma lambreta desenfreada, atrás da própria sombra, ficava completamente louco e começava a balir estrondosamente e...“ai de mim se não me abrigasse”, disse o Tio Alberto. Quando as crises lhe passavam parecia um cordeiro, mas nunca se podia estar descansado, porque quando menos se esperava... zás!
O olhar esgazeado denunciava o mundo irreal em que vivia.

A sonsa era uma cabra malhada, castanha e branca. Estragava a pastagem, debicando aqui e acolá apenas as ervas mais verdes e suculentas, pisando com as patas aquilo que as outras eram obrigadas a comer. O seu ar de sonsinha não condizia nada com o seu interior. Mimada e incompetente, fazia birras quando o meia leca se abeirava dela e lhe dava a entender que queria “saltar-lhe”. Era a ruína das pastagens. A única coisa que a acalmava, nos seus desvarios, eram as carícias que, pacientemente, o Tio Alberto lhe fazia com o cajado no focinho. Nessa altura mostrava os dentes, em jeito de sorriso, e transformava-se numa cabra normal. O olhar envergonhado e “inocente” escondia o veneno de serpente que lhe corria nas veias. A aparente candura disfarçava o pecado dos atos.

A periquita era uma cabra de pescoço esguio e emproado! Esbranquiçada, ninguém sabia a idade que tinha! O seu aspeto “oscilava” entre ar de reformada e teenager inconsciente. Era a “desgraça” do rebanho! Ninguém sabia quando a tinha pelo rabo ou pela cabeça. Manienta em último grau, quando não estava a comer estava a balir, mas o som era de tal maneira arrepiante que todo o rebanho ficava em sobressalto. Deve ter sido abandonada nas redondezas, pois apareceu no rebanho, sem ninguém saber como. A propensão para o mal e o cinismo eram evidentes no olhar opaco.

Do “convívio” do meia leca, da sonsa e da periquita (muito prafrentex, como me disse o Tio Alberto) foram aparecendo cabras e cabritos, qual deles o mais maléfico e ordinário. O rebanho, transformado em “onda selvagem” teve que ser abatido.
Os serviços do Tio Alberto foram dispensados. Foi nessa altura que começou a receber a “fortuna” de menos de 200 euros mensais, sem nunca ter descontado, apesar de ter trabalhado 50 anos a troco de cama, roupa e mesa (dormir na palha, vestir roupa já não usada pelo patrão, comer lavagem de sopa e nacos de pão duro).




Post Scriptum
Há quem diga que foram “malvados” como o Tio Alberto que “arruinaram” a Segurança Social e quem faça “respeitosas vénias de concordância” a tais energúmenos.
Miseráveis!


1 comentário:

  1. Tal como com o Tio Alberto, tambem fui dispensado. Não guardava cabras (nem cabroes) mas lidei com algumas (e com alguns). Apanhei um Meia Leca, protegido pelo poder instituido, que entendeu que eu estava a mais. Foram 42 anos de Trabalho Justo e Honesto. O Meia Leca que se foda.

    ResponderEliminar